O professor catedrático da Universidade de Santiago de Compostela levou o seu grupo forense a nº 1 do mundo e é considerado “o Leonardo da Vinci da genética” pela Fundação Santiago Latorre.
É neto de médico, filho de bancário e quase foi faroleiro e pescador. Mas é na genética forense que Angel María Carracedo Álvarez se destaca. Criou na Galiza um grupo líder mundial cujas técnicas se generalizaram em laboratórios dos cinco continentes, estando ainda ligado a mais de 3000 perícias, inclusive em casos famosos como a identificação de vítimas do tsunami na Ásia e dos atentados do 11 de Março em Madrid. “Estamos concentrados em poder predizer as caraterísticas físicas de um indivíduo a partir de uma amostra biológica”, diz. Anxo Carracedo, como é conhecido, nasceu há 64 anos em Santa Comba, Corunha. Licenciou-se e doutorou-se em Medicina, com um Prémio Extraordinário, pela Universidade de Santiago de Compostela (USC), onde é professor catedrático de Medicina Legal desde 1989 e foi diretor do seu Instituto de Medicina Legal de 1994 a 2012. No currículo inclui a presidência da Academia Internacional de Medicina Legal, da Sociedade Internacional de Genética Forense, da Academia Mediterrânica de Ciências Forenses e da Sociedade Espanhola de Farmacogenética e Farmacogenómica.
Esteve também na direção do Grupo Espanhol e Português de Genética Forense, da Fundação Pública Galega de Medicina Genómica, do Centro Nacional de Genotipagem em Espanha, do Grupo de Medicina Genómica da USC, do Grupo do Centro de Investigação Biomédica em Rede de Doenças Raras e do Grupo de Genética e Biologia de Sistemas do Instituto de Investigação Sanitária de Santiago de Compostela. Foi igualmente o representante espanhol do Grupo de Farmacogenética da Agência Europeia de Medicina. Hoje torna-se doutor honoris causa em Psicologia pela UMinho, um título honorífico que já recebeu de várias universidades da Europa e América, como de Lima (Peru), Simón Bolívar (Colômbia) e Cantábria (Espanha) – e em 2020 vai receber mais dois. Recebeu também os prémios Nacional de Genética, Adelaide, Galien, Rey Jaime I, Fernández Latorre, Galiza de Investigação, Nóvoa Santos, Castelao, de Mérito Policial, Prismas, Terra de Xallas e Varela de Montes, entre outros. É ainda membro da Real Academia Galega de Ciências. Tem mais de 500 livros e artigos científicos, inclusive na “Science” e “Nature”, é editor da conceituada revista “Forensic Science International: Genetics“, está no board de 15 revistas internacionais e é consultor de diversas instituições, sociedades e associações internacionais.
Saber a cor dos olhos e pele, a idade e a origem da pessoa numa amostra biológicaComo é que um grupo em genética forense e genómica se tornou líder mundial a partir da Galiza?
Com muito trabalho, esforço e muita internacionalização acabámos por ser, nesta área, o grupo nº 1 em produção científica do mundo e vivendo um pouco da aplicação de novas investigações na solução de problemas forenses. O nosso grupo tem investigadores de imensos países, em particular de Portugal. Aliás, começou como um grupo galaico-português, em articulação com a Universidade do Porto e muitos pós-doutorandos portugueses.Quais são as principais linhas de investigação? Essas linhas de investigação também incluem a área clínica. |
“A taxa de sobrevivência de muitos cancros melhorou espetacularmente”
A maioria dos genes oncológicos está identificada. Estamos a avançar para a cura dos cancros?
O cancro é sempre um problema dos genes e suas mutações. Pode ter origem ou predisposição hereditária em parte dos casos, no entanto é um problema de mutação somática. Os genes do cancro que mutam numa célula do pulmão ou numa do cérebro não podem morrer, começam a dividir-se e a tratar de sobreviver. Ainda não identificamos muitos genes do cancro nem entendemos bem quais estão envolvidos nos cancros resistentes ao tratamento, particularmente as chamadas cancer stem cells, células-mãe do cancro. Também ainda não entendemos bem os microRNAs, umas pequenas moléculas de ADN relacionadas com a tradução do ADN. Evidentemente, graças ao conhecimento molecular do cancro, ligado à imunoterapia e a anticorpos monoclonais, a sobrevivência de muitos cancros melhorou espetacularmente. É uma revolução total! A taxa de sobrevivência avançou muitíssimo. Quando comecei, morriam 90% das crianças com leucemia; hoje, vivem 90% delas. No cancro da mama há uma sobrevivência de 80% e o do colo-retal é similar. Faltam ainda cancros como melanoma, cabeça, pescoço ou pâncreas, temos que continuar a investigar.
Se pela amostra de ADN se pode conhecer o mapa genético da pessoa, é possível bloquearmos a progressão das doenças antes que elas surjam, aumentando a longevidade e a qualidade de vida?
São duas coisas distintas. Há muitos tratamentos que têm que ver com o ADN, em particular no cancro. Também há cada vez mais doenças genéticas raras em que se pode fazer tratamentos ligados ao avanço em edição genética, chamado terapia cénica de CRISPR. Isto vai evoluindo lentamente. Outra coisa é a ideia de longevidade. Podemos manipular genes para haver uma vida mais longa. Eu creio que a morte programada do individuo é uma necessidade quase biológica. Por isso, interessa-me mais aumentar a qualidade de vida do que a longevidade. Penso que os esforços de investigação deveriam ser assim. Não morrer e não ter saúde é o maior problema que uma pessoa pode ter. Penso que importa aumentar a qualidade de vida e não pensar tanto em viver mais e não viver melhor.
Isso enquadra-se na chamada medicina preventiva…
…que é importantíssima. Adiantar-se aos problemas é fundamental e a genética pode ajudar muito.
A medicina personalizada é considerada mais eficaz, segura, dirigida, com menos efeitos secundários e permite avaliar o tratamento individualizado de sintomas e causas. Como se pode agir dessa forma, sabendo que há mais custos associados e requer-se equidade de serviço para a população em geral?
A medicina personalizada é uma realidade. Já há muitos medicamentos com biomarcadores para um subgrupo de pacientes. Claro, ao repercutir o gasto do desenvolvimento de um fármaco num grupo pequeno, o custo é maior. Basta exemplificar com as doenças raras; há tratamento para umas 200 e, no ano 2027, estima-se que haja tratamento para umas 1500, representando a passagem de 0.5% a 10% dos gastos públicos de saúde.
Como se resolve isto?
É um problema dos sistemas de saúde e há que pensar como fazê-lo. Preocupa-me muito, porque não sei se os decisores estão conscientes do que aí vem. Para mim, justiça, educação e saúde são três direitos vitais das pessoas, têm que ser garantidos com a mesma equidade. Se a medicina personalizada é mais custosa? Sim. Se é mais eficaz? Sim. Se tem menos efeitos secundários? Sim. Pois então há que pagá-la e financiá-la de alguma forma, na medida do possível, gastando menos noutras áreas ou tendo mais impostos. É a minha opinião.
A que se deve o seu interesse recente pelo autismo e outros transtornos psiquiátricos infantis?
Não estamos a prestar-lhes atenção clínica e social suficiente, continuam estigmatizados. Olhamos para o lado sem dar-nos conta de quantos sofrem. Um rapaz de 12 anos com esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo ou anorexia… será melhor que não se saiba disso? Porquê? Não há pressão social ou económica por detrás. Estes transtornos são extremamente prevalentes e necessitam de muita investigação e atenção social, médica, educativa. Se posso fazer algo sobre isto, fá-lo-ei. Criei grupos de investigação nestas áreas, que tratam também a genética. Tenho fundações de perturbação de atenção e hiperatividade; preocupa-me o que se passa com a justiça destes menores que cometem delitos, as prisões podem ser um problema, há que os integrar. Também os que estão hospitalizados há algum tempo têm comportamentos violentos ao voltarem para as famílias. Estou a lutar nestas esferas para que estes rapazes possam integrar-se bem na sociedade, fazendo mais felizes quem os rodeia e a eles próprios.
No Dia da Escola de Psicologia da UMinho em abril de 2019, com o presidente da Escola, Miguel Gonçalves, e o reitor Rui Vieira de Castro
“Investigadores portugueses de doutoramento e pós-doc são os melhores que tive”
O uso do ADN para provas de parentalidade, casos criminais e identificação de vítimas generalizou-se. A pressão dos média e séries como CSI e Bones vieram dar mais responsabilidade na eficácia?
Muita gente pensa que a vida é CSI e tudo se soluciona, que o ADN é infalível… não é! É uma probabilidade que pode ser grande ou pequena. Isto faz com que possa haver erros judiciais. Recentemente, publicamos num consócio europeu o manual Making sense of forensic genetics, para explicar aos juízes, advogados e à população em geral quais são as possibilidades e os limites do ADN, porque pode não ser o suficiente para culpar um indivíduo. É preciso cuidado com a interpretação. O manual está em inglês, em espanhol e estamos a preparar a versão portuguesa. Divulgar bem estas ferramentas é a única maneira de evitar efeitos perniciosos de séries como CSI, que, para mim, têm impacto negativo.
E em relação aos média?
Estamos envolvidos em muitos casos forenses que foram mediatizados pelo mundo. Entendo o direito à informação. Mas também entendo que a independência judicial e pericial deve ser um bem superior ao direito de informação. Nunca gostei que se mediatizasse o que ainda está em investigação. Não me sinto bem a falar com um juiz com uma câmara de televisão atrás de mim. Não comunico de mesma forma. A verdade é que sou uma pessoa tímida e isso põe-me particularmente nervoso. Enfim, penso que é preciso procurar outros equilíbrios. São tempos diferentes para dar respostas.
Não patenteou algumas descobertas, como marcadores biomédicos agora usados em todo o mundo. Hoje, talvez o fizesse de forma diferente, pela sua experiência, num quadro de dificuldades de apoio público à ciência e em que é decisivo divulgar a ciência para o cidadão ter decisões conscientes.
De facto, o financiamento da ciência é complicado. Em Espanha e em Portugal há uma realidade cultural de falta de mecenato, ao contrário dos EUA e Reino Unido, e foi-se prestando menos atenção à ciência sem dar conta da importância da I&D. Os próprios cientistas não estavam preparados para capitalizar a investigação e proteger a propriedade intelectual. Na altura, eu não entendia a importância da patente e perdi oportunidades importantes na vida. Enfim, eu gostaria de doar as patentes à humanidade, se se descobre deve ser utilizado por outros. A ideia seria protegê-lo na instituição [USC], para daí criar um rendimento.
O que pensa sobre a ciência em Portugal, nomeadamente a UMinho, com a sua Escola de Psicologia e o CIPsi (Centro de Investigação em Psicologia)?
Os portugueses são espetaculares. São os melhores investigadores de doutoramento e pós-doutoramento que tive (e tive-os de mais de 40 nacionalidades de todo o mundo). São uma garantia impressionante de qualidade, de trabalho, de formação, de falar em inglês. Têm todas as possibilidades, mas importa dar-lhes também dinheiro, cargos, estruturas, possibilidades de progressão, carreiras estáveis. É uma necessidade. Na área da Psicologia, existe uma “fortaleza” na UMinho e vamos atrás disso. A nossa filosofia foi sempre termos know-how “potente”, pois quando precisarmos de outras áreas – e a Psicologia ou a Psiquiatria são importantíssimas – tenho a sorte de colaborar com investigadores de nível máximo da UMinho e que trabalham muito bem.
O que significa para si ser doutor honoris causa pela UMinho?
Penso que na UMinho querem-me demasiado bem, com muito afeto. Tenho doutoramentos honoris causa de muitas universidades, mas na verdade o que me traz mais alegria é este. Seguramente deve-se a motivos emocionais ou afetivos ou de colaboração com grupos da UMinho, mas para mim é uma honra enormíssima receber esta distinção. É uma alegria muito grande e dá-me muito ânimo para seguir em diante.
Os distinguidosEm 46 anos de existência, a UMinho atribuiu 19 doutoramentos honoris causa a personalidades eminentes que se tenham destacado pela sua reputação, mérito ou ação na sociedade. É um dos maiores galardões concedidos pelas universidades e foi adotado pela UMinho em 1979, com a atribuição do grau a Hans Flasche, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Já em 1990 foram agraciados quatro ilustres em simultâneo: Cornelio Sommaruga, que presidiu o Comité Internacional da Cruz Vermelha; Émile Noel, antigo secretário da Comissão dos Assuntos Gerais do Conselho da Europa; Eurico Dias Nogueira, então arcebispo de Braga; e Eurico Teixeira Melo, vice-primeiro-ministro no governo de Aníbal Cavaco Silva. Seguiu-se em 1994, sempre no Dia da UMinho, o reconhecimento de José Veiga Simão, ministro da Educação Nacional de Marcello Caetano que lançou as universidades do Minho, Aveiro, Évora e Nova de Lisboa.
Em 2002 houve três homenageados: Joaquim Pinto Machado, membro da comissão instaladora da UMinho e referência mundial na educação médica; Francisco Carvalho Guerra, então presidente do Conselho de Deontologia da Ordem dos Farmacêuticos; e José Luís Encarnação, fundador do Instituto Fraunhofer de Computação Gráfica e professor emérito da Universidade Técnica de Darmstadt (Alemanha). Três anos depois foi a vez do ex-Presidente da República moçambicano Joaquim Chissano, numa cerimónia assistida pelo chefe de Estado português Jorge Sampaio e pelo seu antecessor Mário Soares. Em 2011, mas a 11 de abril, foram de novo três laureados: Marcel de Botton, fundador da multinacional Logoplaste; Michel Maffesoli, sociólogo da Universidade de Paris Descartes (França); e Joseph Gonnella, reitor emérito do Medical College da Universidade de Thomas Jefferson (EUA). No ano seguinte, a 26 de outubro, foi laureado o arquiteto Nuno Portas, no Palácio dos Duques de Bragança, em Guimarães. A 17 de junho de 2015, de regresso ao salão medieval do Largo do Paço, em Braga, a distinção coube a Ramón Villares, presidente do Conselho da Cultura Galega e catedrático da Universidade de Santiago de Compostela. Um ano depois, integrando de novo na sessão solene do Dia da UMinho, foi agraciado Gene Grossman, professor da Universidade de Princeton (EUA) e um economista mundial ímpar. A 15 de fevereiro de 2019, o grau foi entregue a Frei Bento Domingues, “o teólogo das periferias”, e ao juiz conselheiro jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, que foi ministro da Justiça e presidente do Conselho Geral da UMinho. Este ano é a vez do geneticista galego Angel Carracedo. CRONOLOGIA 1979 | Hans Flasche |